Fonte: Jornal dos Amigos
Antigamente, quando se vivia na roça, lixo não era problema. Não havia plástico, latas, papel, detergentes, produtos químicos. Os restos de comida eram reciclados pelos animais, o mais notável dentre eles sendo o porco, que comia tudo que sobrava. A grande lei que diz que "nada se perde e nada se cria, tudo se transforma" bem que pode ter sido intuída por Lavoisier na contemplação de um porco que fazia o seu trabalho. Fezes e urina não eram problema. Não poluíam. As bananeiras, plantadas em moitas perto das casas, eram os lugares onde os humanos deixavam os seus detritos que, na verdade, não eram; eram adubos. Lombos de porcos assados e bananas, num momento anterior dos processos transformadores da natureza, haviam sido outras coisas. O lixo estava integrado na circulação da vida.
Aí vieram as cidades.
Nas cidades as coisas se complicaram. Não há moitas de bananeiras suficiente para todos. Daí a necessidade dos urinóis e criados-mudo onde as fezes a e urina, outrora depositadas nas bananeiras, eram colhidas e guardadas. Como não havia serviço de coleta de lixo e as porcarias não podiam ficar estocadas de casa, o jeito era jogá-las na rua.
Descrições da Paris daqueles tempos são espetáculos dignos de telas infernais de Bosch. Era muito arriscado andar pelas ruas. Nunca se sabia quando o morador do segundo andar ia despejar os penicos pela a janela. Sem ter condições para ser transformado, o lixo se amontoava, tornando-se as delícias de bilhões de ratos e trilhões de baratas. A protestante Genebra, sob o governo férreo de Calvino, foi a primeira cidade a imaginar e a estabelecer um sistema de coleta de lixo. O hábito ficou. Em Genebra, ai daquele que se atrever a jogar na rua uma bolinha de papel.
Aí veio a civilização tecnológica.
As primitivas e malcheirosas "casinhas" se transformaram em banheiros limpos e perfumados. Neles basta que se aperte um botão a e coisa feia desaparece magicamente, não se sabendo para onde vai. Já imaginaram as grandes cidades, São Paulo, Nova York, Hong- Kong, as milhares de toneladas de fezes e urina que diariamente são produzidas e desaparecidas? Desaparecidas nada. Na natureza nada se perde...
Elas vão para um outro lugar. E as toneladas de papel, entulhos, plásticos, latas, garrafas, pneus, automóveis, montanhas de coisas que compramos e jogamos fora, detergentes, produtos químicos, resíduos industriais, fuligem, gases- tudo isso - todo dia- sem parar- sem que a natureza tenha condições de transformar- uma garrafa de plástico, em termos humanos, é praticamente eterna, indestrutível. Onde se colocar tudo isso ? As águas são as que mais sofrem. Joga-se um pneu no mar e vapt-vupt, a mágica está feita, não existe pneu. Ele some. Também os rios.
Um menininho, olhando para um riachinho imundo que passa perto de Itaici, perguntou à sua mãe: "Mamãe, por que é que os rios têm de ser sujos?".
Os rios não têm de ser sujos. Nós os sujamos. E eles ficarão cada vez mais sujos. Porque deixaram de ser rios e passaram a ser esgoto. Contemplar o rio Tietê e o Pinheiros é uma experiência de fim de mundo. O problema do lixo só pode ser resolvido com medidas políticas e técnicas. O custo econômico é imenso e as dificuldades técnicas incalculáveis. Nesse campo falta-me competência e poder. Nada posso fazer.
O fato do lixo, entretanto, tem uma dimensão ética: a forma como eu, individualmente, lido com o lixo, revela o cuidado (ou falta de cuidado) que tenho para com o mundo que me cerca. O lixo espalha pelas praças, ruas, jardins, a maneira natural de as pessoas irem jogando papel, latas e garrafas por onde passam revela que elas não têm consciência do mundo em que vivem. Elas não sabem que a natureza é um extensão do seu corpo e que a vida acontece num processo constante de trocas entre o corpo e a natureza - o ar entra em mim, sai de mim, a comida entra em mim, sai de mim. Se a natureza se tornar veneno, o corpo morrerá. O que me dói mesmo não é ver as coisas que as pessoas jogam no espaço por onde passam. É ter consciência de que elas nem ligam, não pensam, não se importam.
Para mim, o ritual supremo do lixo acontecia na Unicamp, no dia "Dia da Universidade Aberta". Faz tempo. Nem sei se esse dia ainda existe. Era um dia em que a universidade se abria para jovens de todo o Brasil; podiam andar pelas ruas e gramados, visitar os institutos e faculdades. O "day after" era o dia do lixo. Alem do puro horror físico do espetáculo, o que se via era o retrato da juventude que por ali passara. Ali estava o retrato de como eles se sentiam frente ao espaço por onde andavam.
Depois fui visitar a cidade de Caruaru, Pernambuco, famosa pela sua feira e pelo delicado artesanato que lá se produz. Ali encontrei gente muito querida e sensível. Mas é preciso confessar que foi o lixo que deixou em mim a impressão mais forte. Voltei triste. Sacos de lixo espalhados por todos os lugares . Pensei logo: se eu fosse prefeito daquela cidade o meu primeiro ato seria convocar a população para que juntos, todos fizéssemos um mutirão de cata de lixo. Catado o lixo, o meu segundo ato seria convocar a população para plantar árvores naquele cenário desolado. Árvores são sinais de vida e de alegria. Penso, inclusive, que esse seria um programa digno de qualquer prefeito.
Mas o choque maior que tive foi na cidade de Aparecida do Norte, lugar sagrado, santificado pela energia mansa da Mãe de Deus, que cobre o mundo com seu manto azul. Imaginei que os romeiros andariam por aqueles espaços com o mesmo respeito com que se anda dentro de um templo, pois o mundo todo, coberto pelo manto da Virgem, é sagrado, é templo. Mas o que eu vi me horrorizou. A sujeira era pior que a sujeira do "day-after" na Unicamp, pior que a sujeira de Caruaru. E aí fiquei sem esperanças, ao ver que as pessoas podem ser religiosas e não ter amor e respeito por esse mundo de Deus. Talvez porque elas, de tanto repetir uma certa reza, tenham aprendido que esse mundo é um "vale de lágrimas" onde os filhos de Eva vivem em desterro. Se o mundo é um lugar de castigo, então sujar o mundo é virtude...
Pensei então, que se eu fosse Papa, tomaria logo algumas providências. Primeiro, criaria uma ordem religiosa cuja missão seria catar o lixo do mundo. Ao lado das ordens que se dedicam a ensinar, das ordens que se dedicam a cuidar dos doentes, das ordens que se dedicam a pregar, das ordens que dedicam a orar, haveria uma ordem que se dedicaria a catar lixo. Por onde que ela passasse, seria aquela felicidade: o lixo desapareceria.
Segundo, promulgaria uma encíclica em que o ato de sujar o mundo é elevado à condição de pecado capital. E os padres seriam instruídos no sentido de, ao ouvirem as confissões dos pecados dos seus fiéis, fazerem uma pergunta final obrigatória: "Meu filho, e quanto ao lixo? Você tem jogado coisas de forma irresponsável nesse mundo que Deus criou para ser um jardim? Que é que você tem feito para retirar o lixo do mundo ?".
E, por último, substituiria as penitências que geralmente são prescritas aos pecadores no confessionário. Ao invés de tantas rezas os pecadores teriam de catar sacos de lixo para obter o perdão para seus pecados. Seria comovente ver, nas manhãs de domingo, senhores, senhoras e jovens irmanados na tarefa espiritual e humilde de catar o lixo espalhado pelas cidades e pelos campos. Acho mesmo que, os sujadores, ao verem isso, se cobririam de vergonha e se arrependeriam dos seus pecados...
Por Rubem Alves, 68, professor emérito da UNICAMP, medalha Carlos Gomes de contribuição à cultura, psicanalista, escritor, articulista da Folha de S. Paulo e do Correio Popular de Campinas, autor de mais de 30 livros para adultos e mais de 30 para crianças.
Antigamente, quando se vivia na roça, lixo não era problema. Não havia plástico, latas, papel, detergentes, produtos químicos. Os restos de comida eram reciclados pelos animais, o mais notável dentre eles sendo o porco, que comia tudo que sobrava. A grande lei que diz que "nada se perde e nada se cria, tudo se transforma" bem que pode ter sido intuída por Lavoisier na contemplação de um porco que fazia o seu trabalho. Fezes e urina não eram problema. Não poluíam. As bananeiras, plantadas em moitas perto das casas, eram os lugares onde os humanos deixavam os seus detritos que, na verdade, não eram; eram adubos. Lombos de porcos assados e bananas, num momento anterior dos processos transformadores da natureza, haviam sido outras coisas. O lixo estava integrado na circulação da vida.
Aí vieram as cidades.
Nas cidades as coisas se complicaram. Não há moitas de bananeiras suficiente para todos. Daí a necessidade dos urinóis e criados-mudo onde as fezes a e urina, outrora depositadas nas bananeiras, eram colhidas e guardadas. Como não havia serviço de coleta de lixo e as porcarias não podiam ficar estocadas de casa, o jeito era jogá-las na rua.
Descrições da Paris daqueles tempos são espetáculos dignos de telas infernais de Bosch. Era muito arriscado andar pelas ruas. Nunca se sabia quando o morador do segundo andar ia despejar os penicos pela a janela. Sem ter condições para ser transformado, o lixo se amontoava, tornando-se as delícias de bilhões de ratos e trilhões de baratas. A protestante Genebra, sob o governo férreo de Calvino, foi a primeira cidade a imaginar e a estabelecer um sistema de coleta de lixo. O hábito ficou. Em Genebra, ai daquele que se atrever a jogar na rua uma bolinha de papel.
Aí veio a civilização tecnológica.
As primitivas e malcheirosas "casinhas" se transformaram em banheiros limpos e perfumados. Neles basta que se aperte um botão a e coisa feia desaparece magicamente, não se sabendo para onde vai. Já imaginaram as grandes cidades, São Paulo, Nova York, Hong- Kong, as milhares de toneladas de fezes e urina que diariamente são produzidas e desaparecidas? Desaparecidas nada. Na natureza nada se perde...
Elas vão para um outro lugar. E as toneladas de papel, entulhos, plásticos, latas, garrafas, pneus, automóveis, montanhas de coisas que compramos e jogamos fora, detergentes, produtos químicos, resíduos industriais, fuligem, gases- tudo isso - todo dia- sem parar- sem que a natureza tenha condições de transformar- uma garrafa de plástico, em termos humanos, é praticamente eterna, indestrutível. Onde se colocar tudo isso ? As águas são as que mais sofrem. Joga-se um pneu no mar e vapt-vupt, a mágica está feita, não existe pneu. Ele some. Também os rios.
Um menininho, olhando para um riachinho imundo que passa perto de Itaici, perguntou à sua mãe: "Mamãe, por que é que os rios têm de ser sujos?".
Os rios não têm de ser sujos. Nós os sujamos. E eles ficarão cada vez mais sujos. Porque deixaram de ser rios e passaram a ser esgoto. Contemplar o rio Tietê e o Pinheiros é uma experiência de fim de mundo. O problema do lixo só pode ser resolvido com medidas políticas e técnicas. O custo econômico é imenso e as dificuldades técnicas incalculáveis. Nesse campo falta-me competência e poder. Nada posso fazer.
O fato do lixo, entretanto, tem uma dimensão ética: a forma como eu, individualmente, lido com o lixo, revela o cuidado (ou falta de cuidado) que tenho para com o mundo que me cerca. O lixo espalha pelas praças, ruas, jardins, a maneira natural de as pessoas irem jogando papel, latas e garrafas por onde passam revela que elas não têm consciência do mundo em que vivem. Elas não sabem que a natureza é um extensão do seu corpo e que a vida acontece num processo constante de trocas entre o corpo e a natureza - o ar entra em mim, sai de mim, a comida entra em mim, sai de mim. Se a natureza se tornar veneno, o corpo morrerá. O que me dói mesmo não é ver as coisas que as pessoas jogam no espaço por onde passam. É ter consciência de que elas nem ligam, não pensam, não se importam.
Para mim, o ritual supremo do lixo acontecia na Unicamp, no dia "Dia da Universidade Aberta". Faz tempo. Nem sei se esse dia ainda existe. Era um dia em que a universidade se abria para jovens de todo o Brasil; podiam andar pelas ruas e gramados, visitar os institutos e faculdades. O "day after" era o dia do lixo. Alem do puro horror físico do espetáculo, o que se via era o retrato da juventude que por ali passara. Ali estava o retrato de como eles se sentiam frente ao espaço por onde andavam.
Depois fui visitar a cidade de Caruaru, Pernambuco, famosa pela sua feira e pelo delicado artesanato que lá se produz. Ali encontrei gente muito querida e sensível. Mas é preciso confessar que foi o lixo que deixou em mim a impressão mais forte. Voltei triste. Sacos de lixo espalhados por todos os lugares . Pensei logo: se eu fosse prefeito daquela cidade o meu primeiro ato seria convocar a população para que juntos, todos fizéssemos um mutirão de cata de lixo. Catado o lixo, o meu segundo ato seria convocar a população para plantar árvores naquele cenário desolado. Árvores são sinais de vida e de alegria. Penso, inclusive, que esse seria um programa digno de qualquer prefeito.
Mas o choque maior que tive foi na cidade de Aparecida do Norte, lugar sagrado, santificado pela energia mansa da Mãe de Deus, que cobre o mundo com seu manto azul. Imaginei que os romeiros andariam por aqueles espaços com o mesmo respeito com que se anda dentro de um templo, pois o mundo todo, coberto pelo manto da Virgem, é sagrado, é templo. Mas o que eu vi me horrorizou. A sujeira era pior que a sujeira do "day-after" na Unicamp, pior que a sujeira de Caruaru. E aí fiquei sem esperanças, ao ver que as pessoas podem ser religiosas e não ter amor e respeito por esse mundo de Deus. Talvez porque elas, de tanto repetir uma certa reza, tenham aprendido que esse mundo é um "vale de lágrimas" onde os filhos de Eva vivem em desterro. Se o mundo é um lugar de castigo, então sujar o mundo é virtude...
Pensei então, que se eu fosse Papa, tomaria logo algumas providências. Primeiro, criaria uma ordem religiosa cuja missão seria catar o lixo do mundo. Ao lado das ordens que se dedicam a ensinar, das ordens que se dedicam a cuidar dos doentes, das ordens que se dedicam a pregar, das ordens que dedicam a orar, haveria uma ordem que se dedicaria a catar lixo. Por onde que ela passasse, seria aquela felicidade: o lixo desapareceria.
Segundo, promulgaria uma encíclica em que o ato de sujar o mundo é elevado à condição de pecado capital. E os padres seriam instruídos no sentido de, ao ouvirem as confissões dos pecados dos seus fiéis, fazerem uma pergunta final obrigatória: "Meu filho, e quanto ao lixo? Você tem jogado coisas de forma irresponsável nesse mundo que Deus criou para ser um jardim? Que é que você tem feito para retirar o lixo do mundo ?".
E, por último, substituiria as penitências que geralmente são prescritas aos pecadores no confessionário. Ao invés de tantas rezas os pecadores teriam de catar sacos de lixo para obter o perdão para seus pecados. Seria comovente ver, nas manhãs de domingo, senhores, senhoras e jovens irmanados na tarefa espiritual e humilde de catar o lixo espalhado pelas cidades e pelos campos. Acho mesmo que, os sujadores, ao verem isso, se cobririam de vergonha e se arrependeriam dos seus pecados...
Por Rubem Alves, 68, professor emérito da UNICAMP, medalha Carlos Gomes de contribuição à cultura, psicanalista, escritor, articulista da Folha de S. Paulo e do Correio Popular de Campinas, autor de mais de 30 livros para adultos e mais de 30 para crianças.
2 comentários:
É pra pensar.
O que estamos fazendo por nós mesmos!
Graças à minha filha de seis anos de idade, não tenho mais coragem de jogar um simples papelzinho de bala no chão. Ela me cobra!
Lorena
Especialmente, nesta semana, comemora-se o dia Mundial do Meio Ambiente e da Ecologia. Somos chamados a refletir, rever hábitos, ações e acima de tudo, somos intimados a defender, zelar, proteger e preservar o meio ambiente que nos cerca, que nos encanta e que nos dá o sustento e a vida. Como muito bem disse Monteiro Lobato: "A natureza criou o tapete sem fim que recobre a superfície da Terra. Dentro da pelagem desse tapete vivem todos os animais, respeitosamente. Nenhum o estraga, nenhum o rói, exceto o homem". Sejamos todos fiéis cuidadores do meio ambiente em que vivemos, para o nosso bem e o das futuras gerações.
Maria Dirksen Braatz
Por email
DC 7/06/2011
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